Crime, pecado, direito de escolha da mulher sobre o seu corpo ou questão de saúde pública? Muitas questões envolvem um tema polêmico: o aborto. Atualmente, a intervenção médica para a interrupção da gravidez só é autorizada em três casos: quando há risco à vida da mãe, gravidez decorrente de estupro ou caso de anencefalia, má-formação em que o bebê não tem cérebro. Uma ação protocolada no início de março no Supremo Tribunal Federal (STF) pelo Psol e pelo Instituto Anis de Bioética, porém, pede que o aborto deixe de ser considerado crime até os três meses de gestação, em qualquer situação.
No dia 28 de março, a ministra Rosa Weber, do STF, deu prazo de cinco dias para o presidente Michel Temer, Câmara e Senado se pronunciarem sobre o tema. Em seguida, a ministra também pediria os pareceres da Advocacia-Geral da União (AGU) e a Procuradoria-Geral da República (PGR). A ação pede que sejam suspensas todas as prisões em flagrante, inquéritos policiais, processos em andamento e efeitos de decisões judiciais que tenham relação com procedimentos abortivos praticados nas 12 primeiras semanas de gestação.
Segundo a Secretaria Nacional de Mulheres do Psol, Teresinha Monteiro, o partido ainda não teve acesso às posições dos poderes. Tetê, como é mais conhecida, ressalta que a despenalização do aborto até as 12 semanas de gestação, a exemplo do que ocorre na maioria dos países civilizados, não obriga ninguém a se submeter ao procedimento. "As vítimas dos abortos clandestinos têm classe social e cor [definidas]. As mulheres que não têm dinheiro para uma clínica acabam morrendo de forma desumana", argumenta.
A descriminalização do aborto enfrenta forte resistência de vários setores da sociedade brasileira. Um dos argumentos principais é o de que o direito constitucional à vida deve ser garantido também ao embrião, desde o momento da concepção. Uma das maiores vozes contrárias ao aborto no País é o Movimento Brasil sem Aborto. Para a presidente Lenise Garcia, que é doutora em microbiologia e professora do curso de Biologia da Universidade de Brasília (UnB), o aborto é injustificável em qualquer situação. "Filho não se cancela, em hipótese alguma. Sabe-se que até o terceiro mês de gravidez, a criança está perfeitamente formada", defende.
Lenise condena ainda o aborto em caso de anomalias, de zika e até mesmo de anencefalia, caso já liberado pelo STF. "O aborto não tira a angústia. A própria mãe lida melhor quando tem o filho, mesmo que ele não resista. Já em casos de anomalias menos graves, que permitirão condições de vida para a criança, o aborto é ainda mais questionável", diz. "Hoje, já temos países sem pessoas com Síndrome de Down, por exemplo. Não é por avanços da medicina, mas sim porque estão sendo mortos. Sabemos que hoje as pessoas com Down estão se desenvolvendo. É um preconceito muito grande um cromossomo a mais. Pessoas com deficiência têm o direito de viver como qualquer outra", completa.
A presidente do Brasil sem Aborto considera a ação do Psol um atalho para "tentar impor vontades", uma vez que, segundo ela, a maioria da população é contra o aborto. "Um tema como este não deve ser discutido no STF, de maneira pouco democrática. O parlamento é o fórum adequado para este tipo de debate, pois lá estão os representantes do povo. Há um exagero da judicialização no País", critica. Teresinha Monteiro, do Psol, concorda que, "teoricamente", o assunto não deveria ser levado ao STF. "O caminho correto seria o parlamento, mas lá existe uma bancada ultraconservadora que não entende que o estado é laico. Eles sequer respeitam a decisão sobre fetos anencéfalos, por exemplo", expõe, referindo-se à chamada bancada da Bíblia.
A psicóloga Rosângela Aparecida Talib, mestra em ciências da religião, é integrante da equipe de coordenação das Católicas pelo Direito de Decidir. O grupo, que não tem ligação direta com a Igreja Católica, defende mudanças no clero. "É uma relação de vínculos pessoais, não institucionais, mas padres e até membros de outras denominações fazem parte do nosso conselho", detalha. Rosângela comenta que as mudanças ocorrem muito lentamente dentro da Igreja e, por consequência, na sociedade. "Cerca de 80% dos católicos afirmam que usam métodos contraceptivos, apesar de a Igreja proibir. A proibição do aborto, também, é um grave problema de saúde pública. Milhares de mulheres morrem todos anos na clandestinidade", opina.
Os números das organizações feministas são questionados pelo Brasil Sem Aborto. "Esses dados são inflacionados. O número de mortes decorrentes de aborto apontado é maior do que o número de mortes maternas, se analisarmos os dados do Ministério da Saúde. A conta não bate", alfineta Lenise. Segundo o Movimento Brasil sem Aborto, como a prática é majoritariamente clandestina, não há dados confiáveis.
Celso Felizardo / Folha